quarta-feira, 10 de março de 2010

A VIDA QUE FICA.




Não se engane, meu amor, não se engane.
A vida não passa.
A vida fica, cada vez mais.
Sabe aquele sorriso de ontem,
o menino chorando agarrado ao pai,
a bomba de creme da padaria,
a vez que mandaste o chefe à merda,
o gemido de prazer,
o gol perfeito,
o sol sobre o mar,
o vento com maresia,
o anel perdido,
a tarde de férias,
o amigo morto,
o cheiro do cabelo da primeira namorada,
a irritação com o taxista,
a cerveja gelada entre os amigos que não mais se encontraram,
o dia do casamento,
a palavra mais dura de todas,
o porre de Ano Novo,
o cigarro na janela sobre os telhados,
o abraço no saguão do aeroporto,
o bolo de Fubá da avó,
o livro roubado da biblioteca,
a gripe mal curada,
a manhã de domingo,
o café com pão quentinho,
o assalto à mão armada,
a nuvem em formato de cachorro,
aquele poema inacabado,
a covardia de não ter tentado?
Fica.
Tudo isso e todo o resto ficam.
A vida fica nos olhos,
nas mãos,
nas rugas nos cantos da boca,
nos cabelos que aos poucos ganham as cores do tempo e dos invernos,
nas pernas mais fracas,
mais bambas,
mais trôpegas e cada vez mais cansadas de levantar depois de cada tombo.
A vida fica cada vez mais nos pulmões e no peito,
com rastros de gritos e gargalhadas,
soluços, rancores, tristezas, nas costas
fica a vida como cicatriz das asas arrancadas,
dos punhais,
no encurvar dos ombros que suportam a carga dos anos
e das culpas,
fica a vida,
cada vez mais a vida,
que nunca passa.
Fica nos planos dentro da gaveta,
trancados e cheirando a mofo,
fica na boca com gosto de comida e riso,
de beijos,
das palavras que não queríamos ter dito,
das palavras que não deveríamos ter deixado de dizer.
Não se engane, meu amor, não se engane.
A vida não passa, não.
A vida fica,
cada vez mais,
sempre e sempre mais.
Fica encrustrada na pele que ganha marcas,
que perde a cor, que fica opaca.
Fica nas artérias, nos lábios que enrugam dos carinhos e dos assovios,
das músicas e orações desaprendidas,
nos ouvidos que vão ensurdecendo de desouvir.
Fica nos pés tortos e calejados do andar incessante do mundo,
no ventre que vai secando de desistências e recomeços,
nos olhares cegos de desatenção e desmemória,
nos braços enfraquecidos pela solidão construída palmo a palmo ao nosso redor,
nas frustrações e nas canalhices,
nas pequenas maldades debaixo das unhas,
nas desconfianças mesquinhas atrás das orelhas,
no amargo da língua cheia de ressentimentos.
A vida não passa, meu amor, não se engane.
A vida não passa, não.
Nada disso vai passar.
O tempo minora e ajeita,
recobre a pele arrancada,
mata o viço do brilho de outrora,
mas a vida fica,
sempre e cada vez mais,
e se acumula e nos torna exatamente aquilo que fizemos e faremos dela.
Exatamente.
Portanto, meu amor, tenhamos coragem.
Façamos com a vida o que queremos que ela faça de nós.




Coluna: Madame Tussaud
por Ticcia, às 14:14

DECLARAÇÃO LIVRE DOS DIREITOS DAS PESSOAS DESOBRIGADAS DA FELICIDADE CONSTANTE





I – Toda pessoa tem o direito de errar, mesmo que já tenham explicado a ela mil vezes o certo sem que ela tenha entendido, pois o tempo de compreender e aprender é de cada um.
II – Toda pessoa tem o direito de mudar de idéia, de se contradizer, de voltar atrás, de recomeçar, pois a melhor coisa da vida é mudar, principalmente nas coisas que a gente pensava serem imutáveis.
III – Toda pessoa tem o direito de chorar, de sentir dor, de soluçar e de ficar com ar melancólico, pois o riso, muitas vezes, é falso, enganador e insano.
IV – Toda pessoa tem o direito de fazer silêncio, de calar, de não responder, de ficar quieta e não sair tagarelando, pois no silêncio estão as melhores respostas.
V – Toda pessoa tem o direito de se cansar e de ficar doente, pois o corpo, muito mais sábio que a mente, não é de ferro e sabe sinalizar a hora de parar.
VI – Toda pessoa tem o direito de enraivecer, de xingar, de esmurrar as paredes, de jogar coisas no chão, de gritar. Pois, como disse aquele poeta, tem coisas que só o grito consegue dizer.
VII – Toda pessoa tem o direito de perder, pois só quem perde sabe o quão inesquecível e instrutiva pode ser uma derrota. ( Sobre isso, ouça esta canção. )
VIII – Toda pessoa tem o direito de se dar mal nos negócios, de não conseguir lidar com dinheiro, de não querer ser rico, pois quem tem muito normalmente esquece como é viver com pouco.
IX – Toda pessoa tem o direito de ter medo, pois o medo é um bom anjo da guarda.
X – Toda pessoa tem o direito de duvidar, de perder a fé e de achar que tudo vai dar errado, pois às vezes, tudo dá errado mesmo, e não é culpa de ninguém.
XI – Toda pessoa tem o direito de não saber, pois quem já sabe tudo perde o motivo de viver.
XII – Toda pessoa tem o direito de falar bobagem, pois nem sempre é legal ser inteligente.
XIII – Toda pessoa tem o direito de se esconder, pois todo refúgio é recuperador.
XIV – Toda pessoa tem o direito de se achar o camarada mais ferrado do mundo, pois o problema de cada um é o pior do mundo para cada um.
XV – Toda pessoa tem o direito de reclamar, pois externar o descontentamento ajuda a gente a pensar sobre ele.
XVI – Toda pessoa tem o direito de desperdiçar uma boa chance, pois mesmo as boas chances, muitas vezes, não chegam em boas horas.
XVII – Toda pessoa tem o direito de não ser feliz incondicionalmente o tempo todo, pois a infelicidade faz parte da vida. E é mais feliz quem sabe lidar com ela do que quem a ignora.


Observação:. Diante de tantos direitos, fica estabelecido para a pessoa o dever de preservar os outros de suas más fases, evitando o desrespeito, a agressão e a impertinência, pois precisaremos dos outros para comemorar conosco quando tudo passar.



KARINA ( extraido do Blog Mafalda Crescida)