quarta-feira, 4 de maio de 2011



A GENTE SE ACOSTUMA


Eu sei que a gente se acostuma. 
Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e não ver vista que não sejam as janelas ao redor. 
E porque não tem vista logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma e não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, se esquece do sol, se esquece do ar, esquece da amplidão.

A gente se acostuma a acordar sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E não aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: “hoje não posso ir”. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto. 
A gente se acostuma a pagar por tudo o que se deseja e necessita. E a lutar para ganhar com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra. 
A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes. A abrir as revistas e ler artigos. A ligar a televisão e assistir comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos. 
A gente se acostuma à poluição, às salas fechadas de ar condicionado e ao cheiro de cigarros. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam à luz natural. Às bactérias de água potável. À contaminação da água do mar. À morte lenta dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo de madrugada, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta por perto. 
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta lá.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua o resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem muito sono atrasado.
A gente se acostuma a não falar na aspereza para preservar a pele. Se acostuma para evitar sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma. 

Marina Colassanti
"SE"


Se és capaz de manter a tua calma quando todo mundo em teu redor já a perdeu e te culpa,
de crer em ti quando estão todos duvidando e para esses, no entanto, achar uma desculpa;
 
Se és capaz de esperar sem te desesperares, ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares, e não parecer bom demais, nem pretensioso;
 
Se és capaz de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores; de pensar - sem que só a isso te atire; de, encontrando a desgraça  e o triunfo, conseguires tratar da mesma forma a estes dois impostores;
 
Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas em armadilhas as verdades que disseste
e as coisas porque deste a vida, estraçalhadas, e refazê-las com o bem pouco que te reste;
 
Se és capaz de arriscar numa única parada tudo quanto ganhaste em toda a tua vida,
e perder e, ao perder, sem nunca dizer nada, resignado, tornar ao ponto de partida;
De forçar coração, nervos, músculos, tudo, a dar seja o que for que neles ainda existe,
e a persistir assim quando, exaustos, contudo resta a vontade em ti, que  ainda ordena:
Persisti.
 
Se és capaz de, entre a plebe não te corromperes; e, entre reis, não perder a naturalidade,
e de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes;
Se a todos pode ser de alguma utilidade; se és capaz de dar, segundo por segundo,
 ao minuto fatal todo o valor e brilho;

Tua é a terra com tudo o que existe no  mundo.
E - que ainda é muito mais - és um
                 Homem, meu filho.
  


Rudyard Kipling