sábado, 29 de janeiro de 2011

O BUSCADOR

 
Um dia, o buscador sentiu que devia ir à cidade de Kammir. Ele aprendeu a dar importância para estas sensações que vinham de um lugar desconhecido de si mesmo, assim deixou tudo e partiu.

Depois de dois dias de caminhada por caminhos poeirentos, ao longe avistou, Kammir. Um pouco antes de chegar ao povoado, uma colina à direita do caminho chamou muito a atenção. Estava coberta por um verde maravilhoso e havia uma porção de árvores, pássaros e flores encantadoras; rodeada por completo por uma espécie de vala pequena de madeira lustrada.

Uma portinhola de bronze o convidava a entrar. Logo, sentiu que esquecera o povoado e sucumbiu à tentação de descansar por um momento naquele lugar. O buscador traspassou o portal e começou a caminhar lentamente entre as pedras brancas que estavam distribuídas como por acaso, entre as árvores. Deixou que seus olhos pousassem como borboletas em cada detalhe deste paraíso colorido. Seus olhos eram os de um buscador, e talvez por isso, descobriu, sobre uma das pedras, aquela inscrição:

Abedul Tareg, viveu 8 anos, 6 meses, 2 semanas e 3 dias.

Surpreendeu-se um pouco ao perceber que essa pedra não era simplesmente uma pedra, era uma lápide. Sentiu pena ao pensar que uma criança de idade tão curta estava enterrada naquele lugar. Olhando a seu redor, o homem percebeu que a pedra ao lado também tinha uma inscrição. Aproximou-se para lê-la, dizia:

Yamir Kalib, viveu 5 anos, 8 meses e 3 semanas.

O buscador sentiu-se terrivelmente comovido. Aquele belo lugar era um cemitério e cada pedra, uma tumba. Uma por uma, começou a ler as lápides. Todas tinham inscrições similares: um nome e o tempo de vida exato do morto. Mas o que conectou com o espanto foi comprovar que o que viveu mais tempo mal passara dos 11 anos... Embargado por uma dor terrível sentou-se e começou a chorar.

O zelador do cemitério passava por ali e aproximou-se. O viu chorar por um tempo em silêncio e depois perguntou se ele chorava por algum familiar.

Não, nenhum familiar, disse o buscador. O que acontece com este povoado, que coisa tão terrível há nesta cidade? Por que tantas crianças mortas enterradas neste lugar? Qual é a horrível maldição que pesa sobre esta gente que a obrigou a construir um cemitério de crianças?

O ancião sorriu e disse:


O senhor pode acalmar-se. Não há tal maldição. Acontece que aqui tínhamos um velho costume. Vou lhe contar. Quando um jovem cumpre quinze anos seus pais lhe presenteiam com uma caderneta, como esta que tenho aqui, pendurada no pescoço. E é tradição entre nós que a partir dali, cada vez que desfrutamos intensamente de algo, abrimos a caderneta e anotamos nela:

À esquerda, o que foi desfrutado…
À direita, quanto tempo durou o gozo.

Conheceu a sua namorada e se apaixonou por ela. Quanto tempo durou essa paixão enorme e o prazer de conhecê-la? Uma semana? Duas? Três semanas e meia?... E depois... a emoção do primeiro beijo, o prazer maravilhoso do primeiro beijo, quanto durou? Um minuto e meio de beijo? Dois dias? Uma semana?...
E a gravidez ou nascimento do primeiro filho...?
E o casamento dos amigos…?
e a viagem mais desejada…?
e o encontro com o irmão que voltou de um país distante…?
Quanto tempo durou o desfrutar dessas situações?…
horas? Dias?…

Assim vamos anotando na caderneta cada momento que desfrutamos... cada momento.

Quando alguém morre, é nosso costume, abrir sua caderneta e somar o tempo de desfrute, para escrever em sua tumba, porque esse é para nós, o único e verdadeiro tempo vivido. 
 
Jorge Bucay
A mim enviado pela minha irmã,Pati.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

TRES DIAS PARA VER.

Varias vezes, pensei que seria uma bênção se todo ser humano, de repente, ficasse cego e surdo por alguns dias no princípio da vida adulta. 
As trevas o fariam apreciar mais a visão, e o silêncio lhe ensinaria as alegrias do som.
De vez em quando, testo meus amigos que enxergam para descobrir o que eles vêem. Há pouco tempo, perguntei a uma amiga que voltava de um longo passeio pelo bosque o que ela observara. “Nada de especial” foi a resposta.
Como é possível, pensei, caminhar durante uma hora pelos bosques e não ver nada digno de nota? 
Eu, que não posso ver, apenas pelo tato, encontro centenas de objetos que me interessam. Sinto a delicada simetria de uma folha. Passo as mãos pela casca lisa de uma pétala ou pelo tronco áspero de um pinheiro. Na primavera, toco os galhos das árvores na esperança de encontrar um botão, o primeiro sinal da natureza despertando após o sono do inverno. Por vezes, quando tenho muita sorte, pouso suavemente a mão numa arvorezinha e sinto o palpitar feliz de um pássaro cantando.
Às vezes, meu coração anseia por ver tudo isso. Se consigo ter tanto prazer com um simples toque, quanta beleza poderia ser revelada pela visão! E imaginei o que mais gostaria de ver se pudesse enxergar, digamos, por apenas três dias.

Eu dividiria esse período em três partes. No primeiro dia, gostaria de ver as pessoas cujas bondade e companhia fizeram minha vida valer a pena. Não sei o que é olhar dentro do coração de um amigo pelas “janelas da alma”, os olhos. Só consigo “ver” as linhas de um rosto por meio das pontas dos dedos. Posso perceber o riso, a tristeza e muitas outras emoções. Conheço meus amigos pelo que toco em seus rostos.
Como deve ser mais fácil e muito mais satisfatório para você, que pode ver, perceber, num instante, as qualidades essenciais de outra pessoa ao observar as sutilezas de sua expressão, o tremor de um músculo, a agitação das mãos. 
Mas será que já lhe ocorreu usar a visão para perscrutar a natureza íntima de um amigo? 
Será que a maioria de vocês que enxergam não se limita a ver por alto as feições externas de uma fisionomia e se dar por satisfeita? Por exemplo, você seria capaz de descrever com precisão o rosto de cinco bons amigos? 
Como experiência, perguntei a alguns maridos qual a exata cor dos olhos de suas mulheres, e muitos deles confessaram, encabulados, que não sabiam.
Ah, tudo o que eu veria se tivesse o dom da visão por apenas três dias!
O primeiro dia seria muito ocupado. 
Eu reuniria todos os meus amigos queridos e olharia seus rostos por muito tempo, imprimindo em minha mente as provas exteriores da beleza que existe dentro deles. Também fixaria os olhos no rosto de um bebê, para poder ter a visão da beleza ansiosa e inocente que precede a consciência individual dos conflitos que a vida apresenta. Gostaria de ver os livros que já foram lidos para mim e que me revelaram os meandros mais profundos da vida humana. E gostaria de olhar nos olhos fiéis e confiantes de meus cães, o pequeno scottish terrier e o vigoroso dinamarquês.
À tarde, daria um longo passeio pela floresta, intoxicando meus olhos com belezas da natureza. E rezaria pela glória de um pôr-do-sol colorido. Creio que, nessa noite, não conseguiria dormir.
 No dia seguinte, eu me levantaria ao amanhecer para assistir ao empolgante milagre da noite se transformando em dia. Contemplaria, assombrada, o magnífico panorama de luz com que o Sol desperta a Terra adormecida. Esse dia, eu dedicaria a uma breve visão do mundo, passado e presente. Como gostaria de ver o desfile do progresso do homem, visitaria os museus. Ali, meus olhos veriam a história condensada da Terra — os animais e as raças dos homens em seu ambiente natural; gigantescas carcaças de dinossauros e mastodontes que vagavam pelo planeta antes da chegada do homem, que, com sua baixa estatura e seu cérebro poderoso, dominaria o reino animal.
Minha parada seguinte seria o Museu de Artes. Conheço bem, pelas minhas mãos, os deuses e as deusas esculpidos da antiga terra do Nilo. 
Já senti, pelo tato, as cópias dos frisos do Paternon e a beleza rítmica do ataque dos guerreiros atenienses. As feições nodosas e barbadas de Homero me são caras, pois também ele conheceu a cegueira.
Assim, nesse meu segundo dia, tentaria sondar a alma do homem por meio de sua arte. Veria, então, o que conheci pelo tato. Mais maravilhoso ainda, todo o magnífico mundo da pintura me seria apresentado. Mas eu poderia ter apenas uma impressão superficial. Dizem os pintores que, para se apreciar a arte, real e profundamente, é preciso educar o olhar. É preciso, pela experiência, avaliar o mérito das linhas, da composição, da forma e da cor. Se eu tivesse a visão, ficaria muito feliz por me entregar a um estudo tão fascinante.
A noite do meu segundo dia seria passada no teatro ou no cinema. Como gostaria de ver a figura fascinante de Hamlet ou o tempestuoso Falstaff no colorido cenário elisabetano! Não posso desfrutar da beleza do movimento rítmico, senão numa esfera restrita ao toque de minhas mãos. Só posso imaginar vagamente a graça de uma bailarina, como Pavlova, embora conheça algo do prazer do ritmo, pois, muitas vezes, sinto o compasso da música vibrando através do piso. Imagino que o movimento cadenciado seja um dos espetáculos mais agradáveis do mundo. Entendi algo sobre isso, deslizando os dedos pelas linhas de um mármore esculpido; se essa graça estática pode ser tão encantadora, deve ser mesmo muito mais forte a emoção de ver a graça em movimento
Na manhã seguinte, ávida por conhecer novos deleites, novas revelações de beleza, mais uma vez receberia a aurora. Hoje, o terceiro dia, passarei no mundo do trabalho, nos ambientes dos homens que tratam do negócio da vida. A cidade é o meu destino. Primeiro, paro numa esquina movimentada, apenas olhando para as pessoas, tentando, por sua aparência, entender algo sobre seu dia-a-dia. 
Vejo sorrisos e fico feliz. 
Vejo uma séria determinação e me orgulho. 
Vejo o sofrimento e me compadeço.
Caminhando pela 5ª Avenida, em Nova York, deixo meu olhar vagar, sem se fixar em nenhum objeto em especial, vendo apenas um caleidoscópio fervilhando de cores. Tenho certeza de que o colorido dos vestidos das mulheres movendo-se na multidão deve ser uma cena espetacular, da qual eu nunca me cansaria. 
Mas, talvez, se pudesse enxergar, eu seria como a maioria das mulheres — interessadas demais na moda para dar atenção ao esplendor das cores em meio à massa.
Da 5ª Avenida, dou um giro pela cidade — vou aos bairros pobres, às fábricas, aos parques onde as crianças brincam. Viajo pelo mundo, visitando os bairros estrangeiros. E meus olhos estão sempre bem abertos, tanto para as cenas de felicidade quanto para as de tristeza, de modo que eu possa descobrir como as pessoas vivem e trabalham e compreendê-las melhor. 
Meu terceiro dia de visão está chegando ao fim. Talvez, haja muitas atividades a que devesse dedicar as poucas horas restantes, mas acho que, na noite desse último dia, vou voltar depressa a um teatro e ver uma peça cômica, para poder apreciar as implicações da comédia no espírito humano.
À meia-noite, uma escuridão permanente outra vez se cerraria sobre mim. 
Claro, nesses três curtos dias, eu não teria visto tudo o que queria ver. 
Só quando as trevas descessem de novo é que me daria conta do quanto eu deixei de apreciar.
Talvez, este resumo não se adapte ao programa que você faria se soubesse que estava prestes a perder a visão. Mas sei que, se encarasse esse destino, usaria seus olhos como nunca usara antes. Tudo quanto visse lhe pareceria novo. 
Seus olhos tocariam e abraçariam cada objeto que surgisse em seu campo visual. 
Então, finalmente, você veria de verdade, e um novo mundo de beleza se abriria para você.
Eu, que sou cega, posso dar uma sugestão àqueles que vêem: 
usem seus olhos como se amanhã fossem perder a visão. 
E o mesmo se aplica aos outros sentidos. 
Ouçam a música das vozes, o canto dos pássaros, os possantes acordes de uma orquestra, como se amanhã fossem ficar surdos. Toquem cada objeto como se amanhã perdessem o tato. 
Sintam o perfume das flores, saboreiem cada bocado, como se amanhã não mais sentissem aromas nem gostos. 
Usem ao máximo todos os sentidos; gozem de todas as facetas do prazer e da beleza que o mundo lhes revela pelos vários meios de contato fornecidos pela natureza. 
Mas, de todos os sentidos, estou certa de que a visão deve ser o mais delicioso.


por Helen Keller






(publicado na Selecções Reader's Digest há 70 anos)
 Extraido do LAGASH

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

ERAM CASAS

Eram casas
Em terços rezados
Por entre as ruas
De pedras incertas
Eram fontes
Em águas esperadas
Paradas em anos
Feitos de espera
Eram janelas
Abertas e fechadas
Num esvoaçar de ventos
Quentes e antigos
Nas memórias
De olhares mais recentes
Em mim detidos



Manuela Fonseca

domingo, 23 de janeiro de 2011

A DESPEDIDA.

Se, por um instante, Deus se esquecesse de que sou uma marionete de trapo e me presenteasse com um pedaço de vida, possivelmente não diria tudo o que penso,mas, certamente,
pensaria tudo o que digo.
Daria valor às coisas, não pelo que valem, mas pelo que significam.
Dormiria pouco, sonharia mais, pois sei que a cada minuto que fechamos os olhos perdemos sessenta segundos de luz.
Andaria quando os demais parassem, acordaria quando os outros dormissem.
Se Deus me presenteasse com um pedaço de vida, jogar-me-ia de bruços no solo, deixando a descoberto não apenas meu corpo, como também minha alma.
Deus meu, se tivesse um coração, escreveria meu ódio sobre o gelo e esperaria que o sol saísse.
Pintaria com um sonho um quadro de Van Gogh sobre as estrelas, um poema de Mário Benedetti e uma canção de Serrat. Seria a serenata que ofereceria à Lua.
Regaria as rosas com minhas lágrimas para sentir a dor dos espinhos e o encarnado beijo de suas pétalas.
Meu Deus, se tivesse um pedaço de vida, não deixaria passar um só dia sem dizer às pessoas:
— Amo vocês!
Viveria para amar.
A uma criança, dar-lhe-ia asas, mas deixaria que aprendesse a voar sozinha.
Aos velhos, ensinar-lhes-ia que a morte não chega com a velhice, mas com o esquecimento.
Tantas coisas aprendi com vocês...!
Aprendi que todo mundo quer viver no cimo da montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a escarpa.
Aprendi que um recém-nascido, ao apertar com sua pequena mão, pela primeira vez, os dedos de seu pai, o tem prisioneiro para sempre.
Aprendi que um homem só tem o direito de olhar outro de cima para baixo para ajudá-lo a levantar-se.
São tantas as coisas que aprendi com vocês, mas, ao final, não poderão servir muito porque quando me olharem dentro dessa maleta (laptop), infelizmente estarei morrendo.


sábado, 22 de janeiro de 2011

“Parem todos os relógios.
Desconectem o telefone.
Impeçam o cão de latir com um suculento osso!
Calem os pianos, e, ao som de tambores rufando, tragam o caixão. Que venha o cortejo.
Deixem os aviões voarem no céu, escrevendo a mensagem
“Ele está morto”.
Ponham laços de crepom no pescoço das pombas.
Que os guardas de trânsito usem luvas pretas de algodão.
Ele era meu Norte, meu Sul, meu Leste e Oeste,
a minha semana de trabalho e o meu domingo, meu meio-dia, minha meia-noite, minha fala e minha canção.
Achava que o amor ia durar para sempre.
Eu me enganei.
As estrelas não são necessárias agora.
Desliguem todas.
Embrulhem a lua e desmanchem o sol.
Esvaziem o oceano e limpem a mata,
pois nada mais vale a pena.”


poema de W.H.Auden – Funeral Blues.
O poeta dizia a propósito de um amigo muito amado e brevemente desaparecido.