Eu sou uma mulher que anda por ruas, avenidas, planícies...
 cujo  corpo, eu posso abandonar em pleno cruzar de uma esquina, ao esperar um  semáforo mudar de cor, ao caminhar à beira mar.
 Eu sou uma mulher de  antenas, você não as pode ver, nem eu, mas sei que existem, pois são  elas que me guiam ou mesmo me desvirtuam, mas depois acertam o caminho. 
 Eu sou uma mulher que ama a si mesma. 
Eu sou um presente de Deus para  mim mesma. 
E esse presente, eu preservo, amo, zelo.
Os  meu pés, eu cuido. Hidrato. Massageio. 
As unhas sempre tão lindas!  Porque eles são tudo o que tenho para me locomover. Eles me sustentam  numa dança ou diante da espera, eles me suportam em tamanha maestria  mais que qualquer um poderia fazê-lo. Eles caminham por mim e quando  reclamam apenas imploram por leve toque das minhas mãos.
As  minhas mãos... Ah, minhas mãos! Tudo o que há de mais belo em mim! Elas  tocam peles, cabelos, alimentam. Elas batem, cuidam, acariciam. Elas  escrevem cartas de amor ou desamor, assinam destinos, enxugam as minhas  lágrimas, percorrem meu corpo, buscam a Deus nas madrugadas. 
As minhas  mãos... elas falam, elas são gentis, possuem ar de madame por tão  longas, finas, gestuais! Eu as hidrato, eu as banho em águas de rosas.  Elas acenam adeus, elas enviam beijos, colhem flores e tiram os espinhos  que me furam.
 Minhas mãos recusam beijos.
O  meu tronco. O meu tronco às vezes se enverga muito, mas sempre me  lembro do que passou e o levanto com rapidez e força. 
Eu sou uma mulher  que anda por aí, por aqui, de cabeça erguida, alheia aos passantes,  absorvida pela vida.
 Eu sou uma mulher que ama a si mesma; o meu passo é  leve, sem pressa, mas eu não sei achar nada, só tenho certezas ou  dúvidas.
Meus  braços já não suportam mais tanto peso, mas recebem e se entregam. 
E,  nos dias de solidão, eles me abraçam, embalam-me docemente, feito a um  bebê e a minha voz surge soprando cantigas quaisquer. 
Os meus braços já  quiseram abarcar o mundo, mas hoje aceitam o inevitável e o  inquestionável.
Meu  sexo me dá prazer, me deu crias, me deu dores, mas acima de tudo é o  que carrega a esperança e a certeza de que o amanhã pode amanhecer bem  melhor.
Minhas  pernas me levam, se entrelaçam em outras pernas, mas principalmente se  apertam em mim quando sento e choro, quando me deito e anseio o feto. 
 Minhas pernas lembram-se de mãos, recordam pensamentos perdidos na  maciez, aqueles minutos que nada dizem, nada dizem. 
Minhas pernas me  guiam numa forma que nunca ninguém ousou fazê-lo.
Minha  barriga, ah, minha barriga! Quantas vezes cortada? Quantas vezes  crescida, inchada, doída? Minha barriga conta minha história que iniciou  no umbigo, pariu outros e recebeu toques leves de mãos sedentas. 
Minha  barriga possui a fome do mundo e a minha, a fome que comida nenhuma  sacia.
Meu  olfato, minha audição, minha língua, minha pele, meus vãos... 
amo tudo  isso pois é tudo o que realmente possuo. 
Nada mais tenho além do meu  corpo, exceto a alma que paira por cima, ao lado, ao redor.
Eu  sou uma mulher que anda por aí, por aqui, e outras mulheres olham e  admiram ou invejam.
 Eu sou uma mulher que caminha com prazer no andar e  os homens amadurecidos são sempre tão gentis e me olham com olhos  gulosos.
 Sabem que existo, imaginam quem sou eu . 
Eu sou uma mulher que  os meninos admiram, aguam. 
Eu sou uma mulher que caminha e os mais  velhos cumprimentam.
 Os tolos assobiam.
Eu  sou uma mulher que enxerga muito além do permitido, pois, vejo através  da janela do universo. 
E isso me eleva e isso me atira ao chão. 
Eu sou  uma mulher que sonha. 
Eu sou uma mulher que tem urgência constante de  interpretar cada sonho bem ou mal sonhado, mas que nem sempre consegue.
  Sim, sou eu uma bruxa! Aquela que predestina.
Vivo  dentro da roda e cheiro a perfume de melancia. 
Eu sou uma mulher  completa em si, algumas belezas nem sempre concretas, desvãos, defeitos e  segredos, celulite, cicatrizes e manchas, mas que sabe que tudo lhe  pertence e a ninguém dá nada, só troca.
 
Eu sou uma mulher que pode lhe tocar  de leve, pedindo colo, ou então, puxar a toalha da mesa, ou o tapete,  aquele mais próximo a você, para alcançar o meu objetivo tolo de fazê-lo  sentir igual a mim. Porque eu sou uma mulher que não se importa de  ouvir verdades. 
Eu sei que todos nós as temos. 
Mas eu passei a vida  sonhando com pessoas que rasgassem as minhas fotos, picassem as minhas  cartas, gritassem para mim o tanto que estavam magoadas comigo, só para  eu ter o direito de me defender, só para eu ter o prazer de ver alguém  totalmente despido.
Eu  sou uma mulher que anda por todos os cantos, recantos de almas,  esconderijos secretos. 
Eu sou uma mulher que já pressentiu a morte  várias vezes, mas fez pacto com ela.
 Eu sou uma mulher filha de Deus.
 Eu  sou uma mulher que grita bem alto para que Ele me atenda, mas que  também sussurra implorando compaixão.
Eu  sou uma mulher que pensa, pensa, 
pensa tanto e ferve tanto e espera  tanto e fala tanto e sente tanto que é preciso tempo e vela para se  reorganizar, se entender, mas durante anos, quis ser apenas  bem centrada, bem controlada e fria, pois eu não queria pensar e não  podia sentir.
Descobri que personalidade nasce junto e não há como se desgrudar dela, mas falar, alivia, 
e esperar é um vício bom.
 
Eu sou uma mulher tão  assim assumidamente mulher porque me deram um livro para eu ler, numa  língua que eu desconhecia e me deram um tempo curto, muito curto para  decorar cada vírgula, cada frase, cada passagem à qual eu passaria.
Eu sou uma mulher que quando morrer será cinza
A cinza de alguma flor.
 A flor de alguma cinza.
 Suzana C. Guimarães
(faço minhas, as suas palavras! Leone)