quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O ULTIMO VERÃO EM MARESIAS.



O sol se esconde, e o dia cansado se entrega diante da noite imensa.
Num canto do crepúsculo, os olhos voltados para o poente, pondero sobre a aridez dos caminhos por onde trilhei. Não sei se vou, não sei se fico.
Sobre a tarde que morre apenas deito o meu corpo cheio de perguntas e deixo-me envelhecer lentamente entre velhas anotações, discos e livros, dos quais não consigo me desfazer.
Escuro agora. A noite solta-me as mãos, os pés, mostra-me a partida e dá-me asas para voar dentro da névoa do passado. Sou livre então para correr, gritar e beijar a brisa, sou livre para penetrar a loucura, invadir as noites da minha adolescência e bater as minhas asas empalhadas além das estrelas.
Que me impede de ser um anjo doido e flutuar sobre as tardes coloridas da minha adolescência ? Que me impede de ser um anjo doido e procurar as respostas nas tardes ensolaradas daquele tempo que parecia sem fim ?
Uma música misteriosa me convoca. Parto sem medo.




Em casa os retratos e objetos da minha infância ainda estão espalhados pelas gavetas e armários da memória, preservando o mistério dos primeiros anos. Fotografias, livros, discos, revistas, ruas, não são apenas sombras, são objetos que reconstituem e moldam a transformação de meu rosto.
Durante o dia as portas e janelas todas abertas deixam entrar uma luz muita branca que ilumina por igual todos os mistérios, mas não os desvenda. Do lado de fora o grande areal branco e a velha casa de madeira ainda me espreitam, na medida em que vasculho os abismos da memória com um desenho de todo esse tempo nos bolsos, tentando descobrir o começo desta grande festa.




As gôndolas descem o Grand Canale, rumo ao poente. O pôr-do-sol é uma advertência e um aviso de morte que nunca enxergamos. Somos sempre felizes no último lugar onde estivemos, ou no próximo para onde vamos - só agora percebo isso.
O suor das máscaras do último carnaval de Veneza escorre por entre os meus dedos e lembro que estou em pleno processo de resgate da sucata do passado. Os farrapos de hoje, amanhã já serão apenas saudade.
O vinho acabou, a última gôndola já desapareceu no fim do canal, é hora de me despedir. Amanhã tomo um avião para Roma, só para assistir um show do Dire Straits. Em seguida retorno a Paris, walking in the wild west end, to meet my wild best friend.




Às vezes penso que não é o tempo que passa, somos nós que invadimos calendários e arrancamos dias, somos nós que construímos relógios e giramos os seus ponteiros enrugados, somos nós que inventamos minutos e carregamos horas dilaceradas em nossos bolsos vazios.
Às vezes me ocorre que não é o tempo que passa, somos nós que caminhamos para trás.




O céu derramou hoje um pouco de azul em meus olhos e as velhas ruas da infância morreram todas em mim.
Fui criança novamente, e vi o menino de calças curtas e suspensórios, descendo inutilmente a ladeira quando lá em cima já haviam lhe dito que ela rolara para o abismo. Vi o menino de pés sonhadores e cabelos despenteados descendo a velha rua da escola, os papagaios ainda enganchados nos fios, e os professores já escondendo a solução.
Começa a escurecer. O sol já se pôs por trás dos edifícios, o horizonte sangra novamente em escamas de nuvens, como nas tardes ensolaradas da minha adolescência, e vestido de solidão me integro na noite.


Dois homens, com cordas nas mãos, laçaram ontem o cãozinho que latia nas manhãs alegres da minha infância, e de repente o meu crepúsculo fez-se névoa e morte.
Mas uma música misteriosa salta agora das pautas negras da noite e faz dançar a nata das estrelas. Ressuscito então de incêndios que não chegaram a queimar e penetro esse mundo de mágicos.
A noite me oferece o punhal, a loucura e a angústia de ser livre. As estrelas me oferecem o ritmo, me dão o compasso deste meu cantar e o desespero de voar alto.
- Para que permanecer ?




Mais bonito que o teu sorriso, Marcela, somente a alegria dos papagaios coloridos que eu empinava nas manhãs alegres da minha infância.

Fechadas as portas e janelas da nossa casa, atravesso agora a moldura, como os outros. Do outro lado, frenéticos, as suas caras refletem em vitrais barrocos. Penetro a grande festa pelos lados, como quem entra em um cenário. E o meu cenário é cada vez mais o retrato de toda uma época, e a minha loucura a loucura de todo um tempo, de anjos e de doidos.
A noite finalmente solta-me as mãos, os pés, mostra-me o caminho, e dá-me asas para voar por dentro da névoa que eu mesmo criei. Estou livre para correr, gritar e beijar a noite, estou livre para penetrar a loucura, invadir a madrugada e bater as minhas asas empalhadas bem distante das pessoas comuns.
Uma música misteriosa me convoca. Vou começar a arrumar a minha mala de estrelas e me preparar para partir.

Agora que sei que tudo acabou, que aquilo não vai voltar mais, que a manhã que vem não vai levar facilmente a dor que a noite fez nascer, me vem a lembrança de uma palavra, a recordação qualquer de um olhar, de um gesto, e constato que ficaram faltando palavras, olhares, gestos...
Acordo sobressaltado no meio da noite, tateio na escuridão do quarto, mas só encontro o vazio de uma cama de hotel.
Um ruído de passos na calçada rasga o silêncio de uma noite antiga.

É tarde. As luzes de Paris adormecem nos braços da neblina.


Livro Tristessa,
Thomas G. Marasco


PASSAGE
PASSAGE

Um comentário:

Lane disse...

Meu Deeeeeeeeeeeeeuussssss que coisa mais linda do mundoooo. Eu queria ter escrito esse texto, ter feito essa catarse... Amei.